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8 de julho de 2015

1957-1959.a palmatória


Construíram guerra
nos olhos do menino
[...]
lição mandada decorar
de olhos secos


Maria Teresa Horta, Lição










canivete e a professora maluquinha


Era única, a Escola Primária Maria da Cruz Rolão, em PortAlexandre.

Única pela casa assombrada. É uma casa anexa à escola que deveria ser ocupada pela directora. Dizemos que ela se recusa a lá viver porque tem uma alma do outro mundo que mora nela.

Nas brincadeiras de recreio os candengues  nem se atrevem aproximar-se com medo terror da alma. Mesmo durante o jogo d’escondidas aquele coito é tabu. Mas nem sempre, é verdade. Há sempre os que criam fama de valentões e se acoitam mesmo no caramanchão crescido ao deus-dará na varanda exterior. Até isso é sinal da existência da alma do outro mundo. Mas não lhes adianta porque basta que outros putos adivinhem e soltem um uh!uh! para se apreciar a valentia borrar-se pernas abaixo, berrida  medrosa a sete pés.




Única porque, durante décadas, não houve outra na vila. Foi ali que gerações de pais e filhos aprenderam a soletrar os rios, os afluentes e os subafluentes, a calcorrear com os dedos deslizantes, mapa cima mapa abaixo, as serras, as montanhas, os outeiros com cabeço e sem cabeço, a percorrer a poucaterra-poucaterra das linhas, estações e apeadeiros dos caminhos-de-ferro de Portugal. Pelo que se via, em Angola nada disso existia: não havia rios, nem montes, vales ou quaisquer belezas ou recursos naturais. O Pungo-Andongo, o Cuanza e a Chela eram invencionices dos nacionalistas. Não havia o Cabo Negro porque o padrão – deste e dos outros cabos dos trabalhos – fora colocado, por Digo Cão, directamente na Sociedade de Geografia de Lisboa. Estou em crer que não podia ser de outra forma para sublimar a metrópolis.

Em Angola não havia o caminho-de-ferro de Moçamedes, nem o de Benguela, o de Malanje também não, tampouco o de nenhures. A Chela, com 2.000m de altitude, não era a serra mais alta de “Portugal”. Pois não, porque mandaram construir uma torre, na Serra da Estrela, até o monte atingir os 2.000m, para que Angola não tivesse essa primazia.

Que tacanhez mais primária!

Aprendia-se ali, também ou principalmente, as formas mais eficazes de suportar as palmatoadas. A verdadeira mestra era a palmatória. Se um a se reclinasse, mangonheiro, para a esquerda, palmatoada. Se a tabuada não fosse cantada na escala devida - em dó maior - palmatoada. Se alguém falasse durante a aula, palmatoada. Se não falasse, palmatoada na mesma. Podia alguém não saber que o Cuanza  nasce no Mumbué que isso não tem a menor importância já que ninguém nos ensina e, logo-logo, também ninguém nos pergunta. Mas se acaso o rio Tejo nascesse na Capadócia aí sim, era palmatoada de três em pipa.

A palmatória era o prolongamento pedagógico dos conhecimentos do professor. Se alguém visse um professor sem palmatória na mão era mau sinal: ou estava com paludismo, ou tinha o pulso aberto.

Eu sempre fui um branco de extremos – tive dos melhores mas, também, dos piores professores. Aí adiante vem já um exemplar do segundo tipo.

Tem apenas duas crianças pretas que frequentam na escola, coisa que eu não entendo, havendo tantas outras em idade escolar. E havendo o Canivete. Dizem que só vão na escola os filhos dos brancos e dos similados. E similado é quê? Eu não sei, os outros meninos também. Eu só sei que há muitos Canivetes. Similados, pelos vistos, há só dois.

Canivete é um Mukuankala que todos dias, durante a primeira classe, me acompanha na escola, no ir e no vir. Adoro as estórias que ele me conta. Aprecio sobremaneira as suas explicações sobre as palavras e termos da sua língua-mãe, cantaroladas e abundantes de estalinhos da língua que se entremeiam nas estórias. Acho, até, que foi ele o primeiro responsável pela minha apetência pela Cultura Angolana.

Nem sinto a longa caminhada. A escola fica quase no princípio da vila e eu moro no extremo oposto, onde não há estrada nem de terra-batida, bem para lá da barreira de casuarinas, na pescaria do Venâncio Pobre.

Naquele dia sexta-feira paro, já perto de chegar em casa, sento-me no areal e puxo Canivete pela mão para que faça o mesmo, Queres ver, Canivete, eu já sei ler!?

Abro o livro de leitura da 1ª classe. Canivete parece mais feliz, mais criança do que eu, a criança verdadeira. Aprecia os desenhos bonitos e a arquitectura das letras.





I, g-r-e gre, j-a ja, igreja. Vês como sei! Lê agora tu, aponto para o desenho de uma árvore - não é casuarina mas é uma árvore ainda assim - e para as letras correspondentes.

Eu não sabe ler, minino, diz-me Canivete com os olhos tristes que falam mais do que a boca.

Olho para ele com boca de banzamento. Aberta. Mantenho o olhar, que entristeceu, fixo no meu amigo e tento passar para lá da angústia vidrada nos seus olhos, Preto não vai na escola, tão diferentes daqueles que me cantam estórias bonitas.

Guardo o livro, dou a mão ao Canivete e seguimos a caminho de casa, cada um mais triste do que o outro. Tem muitas coisas que me custa perceber. Mas agora já entendo aquela capa esquiva que Canivete veste nos olhos sempre que chegamos na escola.

Tem apenas duas crianças pretas que frequentam na escola como eu disse. Uma delas é Maria filha do regedor, a outra é Mauro, filho emprestado de um caga-livros parece é mulato. O filho é preto. A professora bem se esfalfa na correcção, diz-se guarda-livros, meninos, mas como não há graça alguma em tal palavrão, o pai do Mauro continuará caga-livros, ad aeternum.

Mauro é o rei das palmatoadas. Para ele podem ser dez, podem ser cem,  que dá no mesmo. Todos dias, antes de ir na escola, visita na capoeira e besunta as mãos com caca de galinha. Assim a palmatória só resvala no sebo e não se sente a dor, esclarece. Por isso não se preocupa muito com os rios, onde nasce o Guadiana? na serra de Lisboa! o quê, sua besta? na serra do Gargomil, não, na serra de Sintra, não, não... na serra das Tábuas! e zás, lá vai palmatoada. Parece não ser nada com ele. Enquanto aguenta o castigo finge que dói, não vá a professora desvendar a sua estratégia. É que a caca de galinha resulta mesmo!

Saber ou não saber, para a professora vai dar ao mesmo. Eu conto:




A sala da aula da 3ª classe está tão cheia de silêncio que apenas se percebe o bje-bje da sô-pressora a contar as malhas do pano de renda.

Os candengues desenham e contam nos cadernos, com folha de linhas e folha lisa entremeadas, a estória completa do velho e do burro. Que há professores assim: quando não estão com pachorra toca a mandar os alunos praticar nas belas-artes. E nós, sozinhos, inventamo-nos grandes escritores e pintores exímios.



Subitamente, vindo das filas de trás, alguém faz vibrar a lâmina de barbear de dois gumes que entalei na frincha do tampo da carteira, as lâminas servem para afiar os lápis, não para melodiar brincadeiras, já se fartara de avisar a professora.

O tuim-tuim da lâmina rasga o silêncio de tal forma que a professora, enrendilhada nos lavores, deixa cair a sua obra-prima e leva as mãos ao peito, bocaberta de sufoco.

Menino Admário, já para o quadro!

A ordem mais temida. Levanto-me sem pressa nenhuma, dirijo-me para junto do quadro negro, negro o quadro e negro o medo, mas argumento:

Não fui eu, sô-pressora!

Então quem foi?

Não sei, não lhe vi.

Não o vi, seu burro, pareces um preto a falar!

Eu sei quem foi sô-psôra, foi o Belmiro, Glória toda orgulhosa, sempre queixinhas.

O resultado é aquele que mais agrada à professora: leva o Belmiro pela presumível autoria, a Glória porque sabe quem foi mas, já agora, não se fica a rir e eu porque não sei mas sou o proprietário da lâmina. O Belmiro chora ranho e a Glória, essa então, desfaz-se em baba. Até aí tudo bem para a professora, porque a glória maior da sua pedagogia e o seu supremo prazer é o choro das crianças.

Quando chega a minha vez, porém, a coisa muda intempestivamente. Mesmo sem caca de galinha nas mãos, aguento estoicamente a meia dúzia de palmatoadas. Sem um gemido. Eu sou assim, sempre fui porque é a minha índole, quando tenho razão não há quem me vergue. Levo mais meia dúzia por não chorar. Continuo sem chorar. A xipala da sô-pressora começa virar furta-cores, na ausência de ais ou lágrimas minhas. Fica vermelha, muda para azul, passa o verde e acaba amarelada.

De repente uma raiva bruta chispa-lhe dos olhos. Pousa a palmatória na secretária e continua com a mão fechada para não se doer. Dizem que também a eles dói. Eu sei que em mim dói mesmo, a valer. Mas em quem dá, dói aonde? Bate uma, duas, três, quatro vezes na cara, na boca, no nariz, onde calha e no sítio que está mais à mão. Literalmente. A minha alva bata, o orgulho de minha mãe, que não admite um risquinho de tinta na alvura do tecido, salpica-se de borrões vermelhos. Do sangue. Sim, que há também quem o tenha azul como a tinta de escrever. O meu é vermelho. O nariz, finalmente, pinga como a professora gosta, mas de sangue.

Preocupo-me mais com os ralhos da mãe pelo estado da bata, do que com o sangue.

Olho para a professora, triste e dorido como só uma criança consegue sentir. Limpo aos punhos da bata o sangue que me escorre do nariz. A professora, mais branca do que a cal da parede (mais uma vez mudou de cor), agarra-se à secretária, não sei porquê!

Abandono o estrado e dirijo-me para a carteira, sempre a sangrar e deixando um rasto de sangue pelo caminho. Glória chora cada vez mais baba. Os restantes alunos estão petrificados de medo. Meto os livros, lápis e cadernos dentro da pasta com o cuidado devido para não os borrar de sangue, sem esquecer a lâmina e abandono a sala. A professora não me deu ordem para sair mas, depois do que aconteceu, estou decidido a que ninguém me trave o passo. Não sei porquê, sinto-me um pequeno gigante.

Já fora da escola paro, pouso a pasta no chão, inclino a cabeça para trás, comprimo o nariz tentando estancar o sangue. Quando sinto que o fluxo diminui, continuo a caminhada para casa.

Junto ao Grémio da Pesca encontro o meu pai. Nunca, até então, vi o cota tão lívido. Conto-lhe o sucedido. O tio Adriano, que passa de motorizada, também se inteira do meu estado e ficam ambos fora de si, quase esgazeados.

Cunhado, leve o miúdo ao hospital que eu vou à escola.

Tenha calma, veja lá o que vai fazer!

Quando lá chegar logo se vê.

No dia seguinte fico a saber o que passou. Como me contam os colegas, o meu pai quis saber da professora que, ou tinha fugido da escola ou estava escondida. Como não aparecesse e depois de pontapear duas carteiras, disse tantas ou tão poucas à directora que a senhora não sabia onde se meter, sem argumentação possível.

O meu pai quer resolver o problema. É um simples pescador poveiro, analfabeto nas letras, rude no trato mas respeitador e mestre no trabalho. Pai a todas as horas, do dia e da noite. Requerimentos ou queixas formais não se vão sobrepor ao intrincado enredo de interesses, amizades e filiações sociais. É o que ele pensa. Eu ando, por ora, longe destas macas, mas lá chegarei e, entretanto, sofro as consequências. Por fim, acalmado pelos outros professores,  virou-se para a directora:

O meu filho, amanhã, vem às aulas. Mas não quero que essa mulher lhe apareça à frente. Resolva o assunto como quiser mas se a criança me diz que viu uma ponta do cabelo dessa bandida, eu próprio lhe ensino com quantas tábuas se constrói uma baleeira.

Terá sido assim que as coisas se passaram com meu pai, ou apenas o exagero inventivo das crianças, vitória sobre o medo que sentiram durante a cena macabra?

A minha mãe, mais cordata, foi aconselhar-se com Dona Maria da Conceição Coelho. A boa senhora estava revoltada. Era também professora embora não fosse, na altura, a directora da escola. Explicou-lhe pacientemente todos os passos que deveriam ser encetados.

O certo é que a professora energúmena, fiquei a saber que é da família dos Matarrões, que agora até os colegas tratam por esquizofrénica, coisa que nós miúdos ficamos a saber tratar-se de um xingamento de médico, é transferida e, mais tarde, mandada mudar de serviço - foi para enfermeira. 

Coitados dos doentes!

Mesmo assim, a partir daquele dia deixei de ser o menino alegre de ontem. Fechei-me. Ganhei medo a tudo e todos. Na escola, mesmo sabendo, tinha receio de responder aos professores. No trato com eles era hermético. Evitava olhá-los de frente, não fossem descobrir o ódio que me ia na alma. Os meus medos transpiravam para fora da escola e acompanhavam-me para todo o lado. Chegava, por vezes, ao limiar do autismo.

E não se pense que a pedagogia da mestra palmatória fica por aqui.

Por causa disto ou porque algo se passa entre os caluandas  e os contratados, assunto que os mais-velhos tratam em surdina sem se aperceberem que também as crianças têm olhos e ouvidos, o pai resolve mandar-me para a metrópole, com a mãe e o mano Mingos.

Vou ficar a saber que a metrópole fica em Portugal.

Como Cabo-Verde, Guiné, São-Tomé-e-Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Damão, Diu, Macau e Timor são os ultramares. Só custa entender porquê que Açores e Madeira não estavam na lista. E Cabinda também não.

No Putu, como todos os candengues chamamos Portugal, a palmatória vai ser mais quente e cantadeira.

Seja como for, no Putu vou repetir a terceira classe porque, depois do caso do sangue, reprovei o ano.







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