por uma quissanga
Porém
o sonho dura pouco. Quando retornamos a Angola comprovo que não vou ter a bici.
O
pai arranjou novo patrão e quando vejo a pescaria ainda tenho ilusões ao
encarar a casa grande. Mentira, não é ali que vamos morar.
A
casa que nos está destinada é na sanzala. É uma correnteza de casas baixas,
simples quartos construídos de enfiada, cada um com quatro paredes, um chão e
um tecto, uma porta e uma janela.
Os
contratados amontoam-se às dezenas em cada quarto, onde não há mais que simples
catres feitos de aduelas de barril e tocos de madeira, algumas velas ou
lamparinas montadas em velhas latas de azeite, para se poderem enxergar uns aos
outros.
Há
uma cozinha com fogão-a-lenha de cimento e um telheiro aberto que serve de
refeitório, sem mesas nem cadeiras, ora essa! onde se recreiam e sunguilam
durante o escasso tempo de folga. Nas traseiras da sanzala um cubículo de
quatro paredes e um chuveiro, onde à noite se pode apreciar a beleza do
firmamento, chama-se casa de banho e completa o complexo habitacional. Não há
sanitários. As necessidades fisiológicas são descarregadas no areal ou no mar.
À
minha família, eu, o mano Mingos, o pai e a mãe (mano Adriano irá nascer mais
tarde), o patrão condescende os dois primeiros quartos da sanzala onde foi
rasgada uma porta de comunicação. Um é o quarto de dormir dos pais, o outro
serve de sala de jantar e nosso quarto. No exterior o meu pai constrói um anexo
de tábuas e folhas de zinco com duas divisões, uma para cozinha e outra para
sanitário e casa de banho. Um chuveiro improvisado em lata de cinco litros de
azeite puro de oliva serve para o banho e uma bacia esmaltada para a higiene
corriqueira de mãos e rosto. A sentina é um latão ontem-de-óleo e tem que ser
despejado no mar, o cano de esgoto por excelência.
Não é um palácio mas a Dona
Maria traz aquilo num brinco, fala o patrão essas palavras de ensebar, como se
faz nas baleeiras e outros barcos, penso eu no meu interior radical, como
alguém dirá um dia.
Em
frente à sanzala uma eira forrada a mateba e cercada de bordões substituiu as
velhas tarimbas que já ali moraram. Serve para a seca de peixe graúdo, como a
corvina. Quando está vaga é o nosso campo de futebol, um excelente campo de
treinos porque só nós conseguimos equilibrar-nos e correr sobre as deslizantes
folhas de mateba. Junto da casa grande há um belo areal onde não se pode
brincar porque parece mal.
Na
casa grande vivem a Avó Maria e a Tia Beatriz. Tem quintal onde crescem
mamoeiros, figueiras e romãzeiras. E anexos para guardar fuba, feijão,
azeite-palma e macanha para os contratados. No quintal da lenha há um pombal
que fornece os ingredientes para as canjas medicinais.
Aquelas
velhinhas são avó e tia porque muitas crianças – que são tantos os netos e
sobrinhos – lhes chamam assim. Como eu não tenho, aqui, nem avó nem tias,
também costumei de chamar-lhes a minha avó e a minha tia. Sobreviventes dos
primeiros poveiros que aqui arribaram, os que não esperaram pela volta do
desejado, trazem no rosto as garroas que suportaram e no ser a sabedoria
acumulada. E isso querem transmiti-lo à candengada. É uma alegria quando se
juntam no quintal da casa grande. Dentro de casa, porém, é um silêncio
abarrotado de respeito quando elas falam aquelas coisas da doutrina e da vida,
que repisam para que as crianças se façam grandes. Há quem não entenda ser
aquela a educação adequada mas elas contrapõem simplesmente como serviu para os meus filhos, que se
fizeram homens, servirá para os meus netos.
Não
gostam nada que eu e o Mingos andemos no meio dos contratados, muito menos que
comamos do seu pirão, que nós adoramos. Coisa de quem nunca provou pirão com
azeite-palma. Chateiam a mãe que nos deve prender em casa para evitar desleixos
na educação. Só se os amarrar a uma
tunga! aflige-se a mãe, mas não deixa de nos açoitar por essas tropelias.
Desadiantou.
Impedidos
de brincar com os filhos dos quimbares à vista de toda a gente, mal podemos
esgueiramo-nos para a praia ou para o areal junto às dunas. E o areal é o céu.
Brancos, pretos e mulatos, à vezes algum albino, damos asas às nossas
traquinices e aos trumunos de bola. E aí se vê que as reviengas não dependem da
cor da pele.
Depois
vamos para uma casa para lá do areal, casa de verdade mesmo junto às dunas e às
casuarinas. Tão junto que basta saltar o muro do quintal para atingir o
paraíso. Mirando as casas de olhos nos olhos, salta à vista que têm a testa
arredondada como os periquitos. A alcunha pega de estaca: gaiola de periquitos.
As
duas coisas que eu mais gosto na casa nova de gaiola de periquitos é o tomate:
ele todo e a cor. A cor é tão diferente dos vermelhos todos que eu não tenho
outra palavra para lhe chamar senão vermelho-tomate. Dizem que ali é um deserto
mas isso pouco importa. Basta que a mãe despeje no quintal as águas de preparar
os alimentos para os tomateiros nascerem e crescerem viçosos. Colher o tomate,
tomar-lhe o peso recheado, passar os dedos pela pele sedosa, molhá-lo em água
corrente e trincá-lo como se fosse uma laranja, mastigá-lo e sentir a frescura
do suco escorrer pelo queixo é o divino sabor da vida.
Anos
mais tarde, quando aquela avó e aquela tia partem para a paz eterna, a nossa família
muda-se para a casa grande. Porque alguém tem que tomar conta da casa, regar as
árvores de fruto, alguém tem que guardar as rações e ter a canseira de as fornecer
ao cozinheiro dos contratados. Vistas bem as coisas, assim o meu pai já nem precisa de aumento de ordenado. Intrigo eu,
radical.
Aqui
há outro sabor de que não abdico: uma buganvília em caramanchão onde esgoto as
horas, refastelado numa cadeira de aduelas com um livro na mão e um rádio de
pilhas ao lado. Leio tudo o que me chega às mãos. Alguém fez, até, nascer rumores
de que, por ler tão demasiado, eu posso vir a ter problemas de saúde. Do foro
psiquiátrico, é bom de ver.
Os
anos passaram e PortAlexandre já tem duas escolas primárias, depois de nascer a
Frederico Welwitsch ao sul, mas o Colégio Cónego Zagalo é o único
estabelecimento de ensino secundário. O Putu é muito lento em dotar Angola de
estruturas essenciais, talvez por estar a muitas léguas marítimas de distância.
As populações sempre sentiram que tinham que ser elas a resolver o que ao
governo compete. O colégio é dirigido por padres católicos, lecciona até ao
quinto ano liceal mas não pertence à rede do ensino oficial. Os alunos são
obrigados a prestar provas no liceu de Moçamedes, a capital do distrito, para
que os seus conhecimentos sejam tidos como válidos.
Depois
só é possível continuar os estudos em algumas das grandes cidades. Nem toda a
gente pode manter os filhos a estudar porque o saber é um luxo. Uns não podem e
a outros não deixam. E, além do mais, as pessoas têm que aprender que todos só
nascem iguais na nudez, mas uns devem ser ricos e outros pobres, que por isso é
que existe o reino dos céus. Para lá vão os pobres quando morrerem já que é mais
fácil um rico passar pelo cu de uma agulha do que entrar naquele reino.
Entretanto, cá em baixo, os ricos não necessitam nem do cu da agulha nem do
reino dos céus, chega-lhes viver na abastança.
No
colégio é um primeiro dia de aulas, uma primeira aula e a apresentação do novo
professor de físico-química. Adianta cantar a chamada: 1, 2, 3, 4... e 27. Não
há aluno 27. Silêncio. O professor enfrenta a turma e aguarda resposta. É parvo! Então faz a chamada de cor sem
saber quantos alunos tem? Eu dou-lhe a resposta, espontânea e científica:
O número 27 está no
infinito, isto é, não existe aluno.
O
professor não acha graça piada. Errou. Como mestre daquela disciplina deveria
conhecer as leis das lentes e espelhos. Será mesmo professor, ou deveria
dedicar-se à pesca? Mas é professor mesmo, será um bom mestre e amigo dos
alunos mas isso ainda ninguém sabe, porque ninguém nasce ensinado nem
aprendido. Para isso ali estão, professores e alunos, mas nem todos chegam a
essa conclusão com a mesma facilidade. Será um bom mestre, é certo, mas deverá
ser ele, sempre, a ter o protagonismo, nas aulas ou fora delas.
Rua!
Saio
da aula não sem antes resmungar:
Falta de sentido de humor…
científico.
O
professor ouviu mas convém-lhe fazer ouvidos de mercador!
Vou
sentar-se no muro que separa o colégio da capitania marítima. Passa por ali o
sacristão que estranha a sua presença:
Não foi na aula?
Fui, mas já saí porque já
sei tudo e aquilo é uma chatice.
Você está mentir, vou te
queixar no sô padre.
Podes queixar ao São Pedro
se quiseres.
O
sacristão segue o seu caminho, desconfiado, sacrista
de merda!
Libertei-me.
Já
não pareço a criança que sangrou na Maria da Cruz Rolão. A pouco e pouco o
autismo abandonou-me. Hoje sou um dos mais galhofeiros e irreverentes do
colégio. Voltei ao antigamente de criança. Por paradoxal que pareça são
professores os responsáveis pela mudança. O Padre Jaime que adora brincar e
jogar vólei com os alunos. Nunca se ouviu este homem levantar a voz. Se está
zangado nota-se no rosto apenas a falta do sorriso, sempre disfarçado mas de
pai. Dona Tina que me ensinou o gosto pelas palavras. Com as suas lições comecei
aprender a manobrá-las. Dona Maria da Conceição, aquela senhora dos olhos de
água que é mãe da Dona Tina, foi quem leu pela primeira vez em público, numa
aula, o meu versejar juvenil. Não esqueço o seu conselho: nunca deixes de
passar para o papel o que te vai na alma. E a aiLeda, uma professora diferente.
Dentro da aula é aquilo que eu nunca tive mas que adoraria: uma irmã mais velha
que serve de mestra. Nela resplandece sempre o carinho da irmã e a exigência da
professora, nas doses correctas. Por alguns eu continuaria na mesma mas, com estes,
comecei a esquecer os medos passados. Entanto, não definitivamente: ainda hoje,
de quando em vez, sobra uma sombra de raiva. Aprendi à minha custa que, nas
coisas da consciência ou da alma, como se queira, nem todos os homens são
iguais. Isto, sim, é que deve ter que ver com a estória do reino dos céus.
Estou
de costas voltadas para a capitania quando escuto uma voz angustiada,
subserviente de medo:
Discurpa, sô chefe, jura
condeus, eu não roubou não.
Roubou, sim, não roubou quê,
seu turra da merda!
O
alarido vem do quarto que nós, os alunos do colégio, sabemos ser o das
palmatoadas, onde os sipaios desancam os contratados que são queixados pelos
patrões. Quando a palmatória é insuficiente entra em acção o cavalo-marinho.
É só pra comer, sô chefe.
É pra comer e não serve
peixe de carapau? Precisa roubar uma quissanga? Quissanga é sua?
É sim, sô chefe, eu que lhe
pescou.
Cada
frase, cada resposta ou queixume são acompanhados de violentas e sonoras
palmatoadas.
Você pescou o peixe mas é na
baleeira, seu cabrão.
Haka, sô chefe! geme o desgraçado, verdade mesmo, lhe pesquei c’onzolo no
ponte. Jura, sô chefe!
É a mesma coisa. Como que
você compraste o anzolo? Também roubou no patrão, não é? E se lhe pescaste no
ponte, o ponte também é do patrão.
Já
contei setenta e cinco palmatoadas.
Outra mão!
Do
contratado já se ouvem apenas gemidos. Às cento e cinquenta a palmatória
descansa.
Desço
do muro e volto-me para a capitania. Abre-se a porta e o sipaio enxota o
contratado com um pontapé na parte externa da coxa esquerda. O homem geme de
dor e sai a coxear. Tem as mãos inchadas como cepos e sangra das unhas.
Toca
a sineta para o intervalo das aulas mas eu continuo no mesmo sítio, revoltado.
Olho para o sipaio que sorri com olhos de alarve.
À
porta da capitania o patrão aguarda pelo contratado. Dá-lhe ordem para subir
para a caixa do camião. Sem palavras, apenas com um cobarde pontapé que lhe
desfere nas canelas.
Sem comentários:
Enviar um comentário