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10 de julho de 2015

1961-1966.a palmatória

por uma quissanga



Porém o sonho dura pouco. Quando retornamos a Angola comprovo que não vou ter a bici.

O pai arranjou novo patrão e quando vejo a pescaria ainda tenho ilusões ao encarar a casa grande. Mentira, não é ali que vamos morar.

A casa que nos está destinada é na sanzala. É uma correnteza de casas baixas, simples quartos construídos de enfiada, cada um com quatro paredes, um chão e um tecto, uma porta e uma janela.

Os contratados amontoam-se às dezenas em cada quarto, onde não há mais que simples catres feitos de aduelas de barril e tocos de madeira, algumas velas ou lamparinas montadas em velhas latas de azeite, para se poderem enxergar uns aos outros.

Há uma cozinha com fogão-a-lenha de cimento e um telheiro aberto que serve de refeitório, sem mesas nem cadeiras, ora essa! onde se recreiam e sunguilam durante o escasso tempo de folga. Nas traseiras da sanzala um cubículo de quatro paredes e um chuveiro, onde à noite se pode apreciar a beleza do firmamento, chama-se casa de banho e completa o complexo habitacional. Não há sanitários. As necessidades fisiológicas são descarregadas no areal ou no mar.

À minha família, eu, o mano Mingos, o pai e a mãe (mano Adriano irá nascer mais tarde), o patrão condescende os dois primeiros quartos da sanzala onde foi rasgada uma porta de comunicação. Um é o quarto de dormir dos pais, o outro serve de sala de jantar e nosso quarto. No exterior o meu pai constrói um anexo de tábuas e folhas de zinco com duas divisões, uma para cozinha e outra para sanitário e casa de banho. Um chuveiro improvisado em lata de cinco litros de azeite puro de oliva serve para o banho e uma bacia esmaltada para a higiene corriqueira de mãos e rosto. A sentina é um latão ontem-de-óleo e tem que ser despejado no mar, o cano de esgoto por excelência.

Não é um palácio mas a Dona Maria traz aquilo num brinco, fala o patrão essas palavras de ensebar, como se faz nas baleeiras e outros barcos, penso eu no meu interior radical, como alguém dirá um dia.

Em frente à sanzala uma eira forrada a mateba e cercada de bordões substituiu as velhas tarimbas que já ali moraram. Serve para a seca de peixe graúdo, como a corvina. Quando está vaga é o nosso campo de futebol, um excelente campo de treinos porque só nós conseguimos equilibrar-nos e correr sobre as deslizantes folhas de mateba. Junto da casa grande há um belo areal onde não se pode brincar porque parece mal.

Na casa grande vivem a Avó Maria e a Tia Beatriz. Tem quintal onde crescem mamoeiros, figueiras e romãzeiras. E anexos para guardar fuba, feijão, azeite-palma e macanha para os contratados. No quintal da lenha há um pombal que fornece os ingredientes para as canjas medicinais.

Aquelas velhinhas são avó e tia porque muitas crianças – que são tantos os netos e sobrinhos – lhes chamam assim. Como eu não tenho, aqui, nem avó nem tias, também costumei de chamar-lhes a minha avó e a minha tia. Sobreviventes dos primeiros poveiros que aqui arribaram, os que não esperaram pela volta do desejado, trazem no rosto as garroas que suportaram e no ser a sabedoria acumulada. E isso querem transmiti-lo à candengada. É uma alegria quando se juntam no quintal da casa grande. Dentro de casa, porém, é um silêncio abarrotado de respeito quando elas falam aquelas coisas da doutrina e da vida, que repisam para que as crianças se façam grandes. Há quem não entenda ser aquela a educação adequada mas elas contrapõem simplesmente como serviu para os meus filhos, que se fizeram homens, servirá para os meus netos.

Não gostam nada que eu e o Mingos andemos no meio dos contratados, muito menos que comamos do seu pirão, que nós adoramos. Coisa de quem nunca provou pirão com azeite-palma. Chateiam a mãe que nos deve prender em casa para evitar desleixos na educação. Só se os amarrar a uma tunga! aflige-se a mãe, mas não deixa de nos açoitar por essas tropelias. Desadiantou.

Impedidos de brincar com os filhos dos quimbares à vista de toda a gente, mal podemos esgueiramo-nos para a praia ou para o areal junto às dunas. E o areal é o céu. Brancos, pretos e mulatos, à vezes algum albino, damos asas às nossas traquinices e aos trumunos de bola. E aí se vê que as reviengas não dependem da cor da pele.

Depois vamos para uma casa para lá do areal, casa de verdade mesmo junto às dunas e às casuarinas. Tão junto que basta saltar o muro do quintal para atingir o paraíso. Mirando as casas de olhos nos olhos, salta à vista que têm a testa arredondada como os periquitos. A alcunha pega de estaca: gaiola de periquitos.

As duas coisas que eu mais gosto na casa nova de gaiola de periquitos é o tomate: ele todo e a cor. A cor é tão diferente dos vermelhos todos que eu não tenho outra palavra para lhe chamar senão vermelho-tomate. Dizem que ali é um deserto mas isso pouco importa. Basta que a mãe despeje no quintal as águas de preparar os alimentos para os tomateiros nascerem e crescerem viçosos. Colher o tomate, tomar-lhe o peso recheado, passar os dedos pela pele sedosa, molhá-lo em água corrente e trincá-lo como se fosse uma laranja, mastigá-lo e sentir a frescura do suco escorrer pelo queixo é o divino sabor da vida.

Anos mais tarde, quando aquela avó e aquela tia partem para a paz eterna, a nossa família muda-se para a casa grande. Porque alguém tem que tomar conta da casa, regar as árvores de fruto, alguém tem que guardar as rações e ter a canseira de as fornecer ao cozinheiro dos contratados. Vistas bem as coisas, assim o meu pai já nem precisa de aumento de ordenado. Intrigo eu, radical.

Aqui há outro sabor de que não abdico: uma buganvília em caramanchão onde esgoto as horas, refastelado numa cadeira de aduelas com um livro na mão e um rádio de pilhas ao lado. Leio tudo o que me chega às mãos. Alguém fez, até, nascer rumores de que, por ler tão demasiado, eu posso vir a ter problemas de saúde. Do foro psiquiátrico, é bom de ver.

Os anos passaram e PortAlexandre já tem duas escolas primárias, depois de nascer a Frederico Welwitsch ao sul, mas o Colégio Cónego Zagalo é o único estabelecimento de ensino secundário. O Putu é muito lento em dotar Angola de estruturas essenciais, talvez por estar a muitas léguas marítimas de distância. As populações sempre sentiram que tinham que ser elas a resolver o que ao governo compete. O colégio é dirigido por padres católicos, lecciona até ao quinto ano liceal mas não pertence à rede do ensino oficial. Os alunos são obrigados a prestar provas no liceu de Moçamedes, a capital do distrito, para que os seus conhecimentos sejam tidos como válidos.

Depois só é possível continuar os estudos em algumas das grandes cidades. Nem toda a gente pode manter os filhos a estudar porque o saber é um luxo. Uns não podem e a outros não deixam. E, além do mais, as pessoas têm que aprender que todos só nascem iguais na nudez, mas uns devem ser ricos e outros pobres, que por isso é que existe o reino dos céus. Para lá vão os pobres quando morrerem já que é mais fácil um rico passar pelo cu de uma agulha do que entrar naquele reino. Entretanto, cá em baixo, os ricos não necessitam nem do cu da agulha nem do reino dos céus, chega-lhes viver na abastança.

No colégio é um primeiro dia de aulas, uma primeira aula e a apresentação do novo professor de físico-química. Adianta cantar a chamada: 1, 2, 3, 4... e 27. Não há aluno 27. Silêncio. O professor enfrenta a turma e aguarda resposta. É parvo! Então faz a chamada de cor sem saber quantos alunos tem? Eu dou-lhe a resposta, espontânea e científica:

O número 27 está no infinito, isto é, não existe aluno.

O professor não acha graça piada. Errou. Como mestre daquela disciplina deveria conhecer as leis das lentes e espelhos. Será mesmo professor, ou deveria dedicar-se à pesca? Mas é professor mesmo, será um bom mestre e amigo dos alunos mas isso ainda ninguém sabe, porque ninguém nasce ensinado nem aprendido. Para isso ali estão, professores e alunos, mas nem todos chegam a essa conclusão com a mesma facilidade. Será um bom mestre, é certo, mas deverá ser ele, sempre, a ter o protagonismo, nas aulas ou fora delas.

Rua!

Saio da aula não sem antes resmungar:

Falta de sentido de humor… científico.

O professor ouviu mas convém-lhe fazer ouvidos de mercador!
Vou sentar-se no muro que separa o colégio da capitania marítima. Passa por ali o sacristão que estranha a sua presença:

Não foi na aula?

Fui, mas já saí porque já sei tudo e aquilo é uma chatice.

Você está mentir, vou te queixar no sô padre.

Podes queixar ao São Pedro se quiseres.

O sacristão segue o seu caminho, desconfiado, sacrista de merda!

Libertei-me.

Já não pareço a criança que sangrou na Maria da Cruz Rolão. A pouco e pouco o autismo abandonou-me. Hoje sou um dos mais galhofeiros e irreverentes do colégio. Voltei ao antigamente de criança. Por paradoxal que pareça são professores os responsáveis pela mudança. O Padre Jaime que adora brincar e jogar vólei com os alunos. Nunca se ouviu este homem levantar a voz. Se está zangado nota-se no rosto apenas a falta do sorriso, sempre disfarçado mas de pai. Dona Tina que me ensinou o gosto pelas palavras. Com as suas lições comecei aprender a manobrá-las. Dona Maria da Conceição, aquela senhora dos olhos de água que é mãe da Dona Tina, foi quem leu pela primeira vez em público, numa aula, o meu versejar juvenil. Não esqueço o seu conselho: nunca deixes de passar para o papel o que te vai na alma. E a aiLeda, uma professora diferente. Dentro da aula é aquilo que eu nunca tive mas que adoraria: uma irmã mais velha que serve de mestra. Nela resplandece sempre o carinho da irmã e a exigência da professora, nas doses correctas. Por alguns eu continuaria na mesma mas, com estes, comecei a esquecer os medos passados. Entanto, não definitivamente: ainda hoje, de quando em vez, sobra uma sombra de raiva. Aprendi à minha custa que, nas coisas da consciência ou da alma, como se queira, nem todos os homens são iguais. Isto, sim, é que deve ter que ver com a estória do reino dos céus.

Estou de costas voltadas para a capitania quando escuto uma voz angustiada, subserviente de medo:

Discurpa, sô chefe, jura condeus, eu não roubou não.

Roubou, sim, não roubou quê, seu turra da merda!

O alarido vem do quarto que nós, os alunos do colégio, sabemos ser o das palmatoadas, onde os sipaios desancam os contratados que são queixados pelos patrões. Quando a palmatória é insuficiente entra em acção o cavalo-marinho.

É só pra comer, sô chefe.

É pra comer e não serve peixe de carapau? Precisa roubar uma quissanga? Quissanga é sua?

É sim, sô chefe, eu que lhe pescou.

Cada frase, cada resposta ou queixume são acompanhados de violentas e sonoras palmatoadas.

Você pescou o peixe mas é na baleeira, seu cabrão.

Haka, sô chefe! geme o desgraçado, verdade mesmo, lhe pesquei c’onzolo no ponte. Jura, sô chefe!

É a mesma coisa. Como que você compraste o anzolo? Também roubou no patrão, não é? E se lhe pescaste no ponte, o ponte também é do patrão.

Já contei setenta e cinco palmatoadas.

Outra mão!

Do contratado já se ouvem apenas gemidos. Às cento e cinquenta a palmatória descansa.
      
Desço do muro e volto-me para a capitania. Abre-se a porta e o sipaio enxota o contratado com um pontapé na parte externa da coxa esquerda. O homem geme de dor e sai a coxear. Tem as mãos inchadas como cepos e sangra das unhas.

Toca a sineta para o intervalo das aulas mas eu continuo no mesmo sítio, revoltado. Olho para o sipaio que sorri com olhos de alarve.

À porta da capitania o patrão aguarda pelo contratado. Dá-lhe ordem para subir para a caixa do camião. Sem palavras, apenas com um cobarde pontapé que lhe desfere nas canelas.



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