SEGUIDORES

6 de julho de 2015

1953. Dezembro

no Cuanza

Em Dezembro de 1953 embarcámos, em Lisboa para Angola, eu e minha mãe, ela na qualidade de colona, forma de não se pagar a viagem, a bordo do vapor “Cuanza” da Companhia Colonial de Navegação.

o vapor “Cuanza” e o albatroz

Antes de subir a bordo bem me aconselharam a comportar-me no navio e a deslocar- me no convés. As instruções sobre higiene e profilaxia tropicais, em aula dada dias antes, foram passadas a minha mãe. Cumpri os conselhos à risca. Um menino é que não, não cumpriu as instruções e recomendações e caiu ao mar, já o navio estava em andamento. Foi sugado pelas hélices, dizem-me, porque eu não me aproximei da amurada. Ele é que nunca mais veio à tona da água. Na verdade o medo apossou-se de mim e pedi de imediato a minha mãe para nos recolhermos ao camarote.

Passados alguns dias de alto-mar – e como ia alto o mar – andava eu enfastiado com a comida de bordo, quando uma amiga de viagem me perguntou Marinho, queres este pratinho de arroz, para desenfastiar? Disse-lhe que não, porque o arroz não chegava para mim e para a minha mãe. A mulher abriu desmedidamente a boca de espanto e eu espantei-me com tanto espanto.

Marinho é o meu nome de casa, disse-lhe a minha mãe, já escaldada andava ela com os mais esquisitos nomes que me punham. Destes nomes extravagantes o primeiro foi-me dado por uma banhista de minha avó de mãe, Ana Matuta. Essa minha avó alugava os quartos que havia no quintal de casa, a turistas que arribavam à Póvoa na época de Verão, a banhos. Uma delas, oriunda de Guimarães, perguntou-lhe o meu nome e, como a minha avó lhe tivesse dito Zé Admário, aplicou-me de imediato um estapafúrdio Zé do Mar. Muitos outros se seguiram, Adomar, Aldemar, Ardemar, Armário (este, creio, de simples gozo), Lindomar, Valdemar…

Da amurada do vapor via o mar, azul-escuro e imenso, presumia-o profundo, onduloso via-se que era e à noite terrífico. Numa manhã, esgueirei-me para a popa e chamei-o. Há dois dias que o via rondando o navio. Era um albatroz forte e imponente no perfil das asas. Abeirou-se de mim, agachado junto à amurada, agarrou-me pela camisola de lã que vestia por via da frialdade e levou-me. Senti-me leve e volátil, dominador de ares e mares. Olhei para o navio e lá vi minha mãe, no convés, estirada numa espreguiçadeira, contente e feliz com ela própria, sem se lembrar de mim, farta era a galhofa com as amigas de fresca data.

Repentinamente o albatroz começou a afastar-se, o vento aumentou de intensidade e eu senti que o pássaro já não me agarrava tão firmemente como no início da viagem, embora me sentisse seguro. Ao longe pressenti uma mancha nascida sem aviso prévio, envolta em neblina e cada vez mais nítida. Quando se mostrou completa era um rochedo negro, coberto de verdura no cabeço. Foi para aí que o albatroz se encaminhou. Numa enorme árvore que me pareceu uma espinheira havia um enorme ninho que mais era de uma águia, talvez pesqueira, porque formado por ramos e raminhos entrançados e recobertos de algas marinhas e folhas várias de árvore. Pousou-me delicadamente no fundo do ninho, esbracejou para ganhar a borda do ninho e ali ficou apreciando a situação. Soltou um grasnido, comunicando-me qualquer coisa que não entendi e levantou voo. Alguns segundos depois desapareceu na bruma. O Cuanza já não se vislumbrava.

Adormeci e ao entardecer acordei. Espreguicei-me pela borda do ninho e só encontrei bruma e mar. De repente ouvi o já familiar grasnido e o albatroz surgiu por trás do ninho, com a sua envergadura imperial. Empoleirou-se nas bordas do ninho, olhou para mim e regurgitou uma massa compacta de peixe e lulas, de cheiro nauseabundo. Olhei para ele estupefacto e atirei: Mas tu pensas que eu vou comer esta porcaria? És mas é um pássaro estúpido. Os homens não comem esta merda, pá! Olhou para mim desconsolado, voltou a engolir a massa de peixe e lulas e atirou-se para cima de mim, abrigando-me e adormecemos de imediato.

O amanhecer do albatroz foi tão cedinho tão cedinho, que não havia ainda nenhum raio de sol. Rebolei de lado, tentando dormir mais um pouco e qualquer coisa de mim bateu nos ramos, tentei acomodar-me com as mãos mas elas não estavam lá, como de costume. Olhei para baixo e os meus pés, afinal, eram patas e garras como as do albatroz, estiquei o que ontem eram os braços e encontrei asas. Torci os olhos em direcção ao nariz e à boca e o que descobri foi um bico forte e amarelado.

Que coisa me estava a acontecer? Não queria acreditar em metamorfoses. Seria eu um albatroz? Guardei os pensamentos para depois. Quando o verdadeiro albatroz saiu para pescar, saí eu também do ninho, no seu rasto. Tentei e consegui mesmo voar. Então, não é que eu era mesmo um albatroz? Senti-me verdadeiramente alado, olhei para baixo e vi o oceano largo e profundo, olhei em frente e vi o horizonte sem fim. Alguns minutos depois de empreender o voo, consciencializei-me que voava à toa, sem rumo definido. Mas a verdade, verifiquei então, não era essa. O incrível é que levava o rumo traçado numa parte do cérebro, o de albatroz. Soube disso quando, longe no horizonte, comecei a descortinar o Cuanza. Enchi-me do brio da minha nova condição e voei cada vez mais forte. Em meia hora tinha alcançado o navio.

Diverti-me a observar o vapor pelo lado de fora, dominador, senhor dos ares e dos mares. Tudo aquilo me pertencia. A minha mãe continuava na mesma espreguiçadeira, ridícula, rindo e galhofando com as amigas de fresca data, sem sinais de se preocupar comigo. Escolhi, intencionalmente, aterrissar no parapeito da amurada em frente a elas. Fiquei a saber que não estava totalmente metamorfoseado quando, olhando para mim, lhe deu o chilique e ela caiu para o lado. As amigas ficaram sem saber se a amparavam no desmaio ou se olhavam para mim, e acabaram, também elas, por entibiar.

Pouco mais de duas semanas depois da partida chegámos a Luanda. Acordei cedinho pela manhã e já não era albatroz. Senti um calor novo quando saí para o convés. Era o calor de Luanda, era dia de Natal e passámos a consoada em casa dos Trocados de Luanda, primos de minha mãe. Havia também os Trocados de Moçamedes e os de Porto Alexandre. Uma enorme primalhada. Os de Moçamedes eram os proprietários do Hotel Moçamedes e foi ali que passámos o réveillon, na companhia do meu pai que nos viera recuperar do vapor.

No segundo dia de Janeiro de 1954 rumámos a PortAlexandre e fomos para a casa que meu pai nos reservara, no bairro do Sena & Ribeiro.

Nestes primeiros tempos o que eu mais estranhei foi a cor preta de certas pessoas. E como era algo desconhecido ganhei o hábito (que apenas durou três ou quatro dias) de colocar as mãos a tapar os olhos. Porém, colocava uma mão à frente da cara, mas com os dedos afastados, para os poder ver.


Sem comentários: