no
Cuanza
Em Dezembro de 1953 embarcámos,
em Lisboa para Angola, eu e minha mãe, ela na qualidade de colona, forma de não
se pagar a viagem, a bordo do vapor “Cuanza” da Companhia Colonial de Navegação.
o vapor “Cuanza” e o
albatroz
Antes de subir a bordo bem me
aconselharam a comportar-me no navio e a deslocar- me no convés. As instruções
sobre higiene e profilaxia tropicais, em aula dada dias antes, foram passadas a
minha mãe. Cumpri os conselhos à risca. Um menino é que não, não cumpriu as
instruções e recomendações e caiu ao mar, já o navio estava em andamento. Foi
sugado pelas hélices, dizem-me, porque eu não me aproximei da amurada. Ele é
que nunca mais veio à tona da água. Na verdade o medo apossou-se de mim e pedi
de imediato a minha mãe para nos recolhermos ao camarote.
Passados alguns dias de alto-mar
– e como ia alto o mar – andava eu enfastiado com a comida de bordo, quando uma
amiga de viagem me perguntou Marinho, queres
este pratinho de arroz, para desenfastiar? Disse-lhe que não, porque o
arroz não chegava para mim e para a minha mãe. A mulher abriu desmedidamente a
boca de espanto e eu espantei-me com tanto espanto.
Marinho é o meu nome de casa, disse-lhe
a minha mãe, já escaldada andava ela com os mais esquisitos nomes que me punham.
Destes nomes extravagantes o primeiro foi-me dado por uma banhista de minha avó
de mãe, Ana Matuta. Essa minha avó alugava os quartos que havia no quintal de
casa, a turistas que arribavam à Póvoa na época de Verão, a banhos. Uma delas,
oriunda de Guimarães, perguntou-lhe o meu nome e, como a minha avó lhe tivesse
dito Zé Admário, aplicou-me de imediato um estapafúrdio Zé do Mar. Muitos
outros se seguiram, Adomar, Aldemar, Ardemar, Armário (este, creio, de simples
gozo), Lindomar, Valdemar…
Da amurada do vapor via o mar,
azul-escuro e imenso, presumia-o profundo, onduloso via-se que era e à noite
terrífico. Numa manhã, esgueirei-me para a popa e chamei-o. Há dois dias que o
via rondando o navio. Era um albatroz forte e imponente no perfil das asas.
Abeirou-se de mim, agachado junto à amurada, agarrou-me pela camisola de lã que
vestia por via da frialdade e levou-me. Senti-me leve e volátil, dominador de
ares e mares. Olhei para o navio e lá vi minha mãe, no convés, estirada numa
espreguiçadeira, contente e feliz com ela própria, sem se lembrar de mim, farta
era a galhofa com as amigas de fresca data.
Repentinamente o albatroz começou
a afastar-se, o vento aumentou de intensidade e eu senti que o pássaro já não
me agarrava tão firmemente como no início da viagem, embora me sentisse seguro.
Ao longe pressenti uma mancha nascida sem aviso prévio, envolta em neblina e
cada vez mais nítida. Quando se mostrou completa era um rochedo negro, coberto
de verdura no cabeço. Foi para aí que o albatroz se encaminhou. Numa enorme
árvore que me pareceu uma espinheira havia um enorme ninho que mais era de uma
águia, talvez pesqueira, porque formado por ramos e raminhos entrançados e recobertos
de algas marinhas e folhas várias de árvore. Pousou-me delicadamente no fundo
do ninho, esbracejou para ganhar a borda do ninho e ali ficou apreciando a
situação. Soltou um grasnido, comunicando-me qualquer coisa que não entendi e
levantou voo. Alguns segundos depois desapareceu na bruma. O Cuanza já não se
vislumbrava.
Adormeci e ao entardecer acordei.
Espreguicei-me pela borda do ninho e só encontrei bruma e mar. De repente ouvi
o já familiar grasnido e o albatroz surgiu por trás do ninho, com a sua
envergadura imperial. Empoleirou-se nas bordas do ninho, olhou para mim e
regurgitou uma massa compacta de peixe e lulas, de cheiro nauseabundo. Olhei
para ele estupefacto e atirei: Mas tu
pensas que eu vou comer esta porcaria? És mas é um pássaro estúpido. Os homens
não comem esta merda, pá! Olhou para mim desconsolado, voltou a engolir a
massa de peixe e lulas e atirou-se para cima de mim, abrigando-me e adormecemos
de imediato.
O amanhecer do albatroz foi tão
cedinho tão cedinho, que não havia ainda nenhum raio de sol. Rebolei de lado,
tentando dormir mais um pouco e qualquer coisa de mim bateu nos ramos, tentei
acomodar-me com as mãos mas elas não estavam lá, como de costume. Olhei para
baixo e os meus pés, afinal, eram patas e garras como as do albatroz, estiquei
o que ontem eram os braços e encontrei asas. Torci os olhos em direcção ao
nariz e à boca e o que descobri foi um bico forte e amarelado.
Que coisa me estava a acontecer?
Não queria acreditar em metamorfoses. Seria eu um albatroz? Guardei os
pensamentos para depois. Quando o verdadeiro albatroz saiu para pescar, saí eu
também do ninho, no seu rasto. Tentei e consegui mesmo voar. Então, não é que
eu era mesmo um albatroz? Senti-me verdadeiramente alado, olhei para baixo e vi
o oceano largo e profundo, olhei em frente e vi o horizonte sem fim. Alguns
minutos depois de empreender o voo, consciencializei-me que voava à toa, sem
rumo definido. Mas a verdade, verifiquei então, não era essa. O incrível é que
levava o rumo traçado numa parte do cérebro, o de albatroz. Soube disso quando,
longe no horizonte, comecei a descortinar o Cuanza. Enchi-me do brio da minha
nova condição e voei cada vez mais forte. Em meia hora tinha alcançado o navio.
Diverti-me a observar o vapor pelo
lado de fora, dominador, senhor dos ares e dos mares. Tudo aquilo me pertencia.
A minha mãe continuava na mesma espreguiçadeira, ridícula, rindo e galhofando
com as amigas de fresca data, sem sinais de se preocupar comigo. Escolhi,
intencionalmente, aterrissar no parapeito da amurada em frente a elas. Fiquei a saber que não estava totalmente metamorfoseado quando, olhando
para mim, lhe deu o chilique e ela caiu para o lado. As amigas ficaram sem saber
se a amparavam no desmaio ou se olhavam para mim, e acabaram, também elas, por entibiar.
Pouco mais de duas semanas depois
da partida chegámos a Luanda. Acordei cedinho pela manhã e já não era albatroz.
Senti um calor novo quando saí para o convés. Era o calor de Luanda, era dia de
Natal e passámos a consoada em casa dos Trocados de Luanda, primos de minha
mãe. Havia também os Trocados de Moçamedes e os de Porto Alexandre. Uma enorme
primalhada. Os de Moçamedes eram os proprietários do Hotel Moçamedes e foi ali
que passámos o réveillon, na companhia do meu pai que nos viera recuperar do
vapor.
No segundo dia de Janeiro de 1954
rumámos a PortAlexandre e fomos para a casa que meu pai nos reservara, no
bairro do Sena & Ribeiro.
Nestes primeiros tempos o que eu
mais estranhei foi a cor preta de certas pessoas. E como era algo
desconhecido ganhei o hábito (que apenas durou três ou quatro dias) de colocar
as mãos a tapar os olhos. Porém, colocava uma mão à frente da cara, mas com os
dedos afastados, para os poder ver.
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