SEGUIDORES

7 de julho de 2015

1954.Fevereiro

o espelho da minha rua


A mais vetusta memória, angolana e fotográfica, que tenho de mim é a reprodução de um retrato tirado no quintal da nossa casa, no bairro do Sena & Ribeiro, em que seguro, risonho e feliz, uma pomba (ou será um pombo?) pelas asas.


O quintal é pitoresco, carregado de flores em latas de banha e azeite puro de oliva e selhas de barris de vinho cortados a meio, como vasos e floreiras, uma marca indelével dos pátios onde vivi.

Estamos em Fevereiro de 1954, certamente, algum tempo depois de termos chegado a Angola, Porto Alexandre, eu e minha mãe, que o meu pai e o meu avô de mãe, o Catritas, já cá estavam, bem se vê, porque o território tinha que ser desbravado com antecedência, claro, pelos machos da família.

Sempre tive uma grande ligação às pombas e pombos, quanto mais não fosse pelas canjas medicinais, como se verá mais adiante.

O bairro do Sena não pertencia de todo aos tais Sena & Ribeiro, uma vez que o meu pai era, até, mestre de sacada do Chico Peixe, uma pescaria vizinha dos ditos, o que não impedia que se vivesse em paz e harmonia.

Havia, naquela zona, várias pescarias, todas a seguir umas às outras, onde meu pai trabalhou: a do Américo Silva, a Mercantil do Xanduca e a do Chico Carvalho (pai). A norte, mas não no Norte, ficava a da Dona Carolina, onde ocorreu o episódio dos Caluandas – que será contado adiante – e muito mais a sul a do Venâncio Delgado, o Venâncio Pobre, encravada entre dunas.

Era o mesmo caminho a entrada e a saída do bairro, uma estrada de terra batida que nascia ainda dentro da afamada curva do Sena, pulverulento e, imediatamente, sujo de barro,

geminado,

já que o lado direito da rua era a cópia esquerda de uma imagem de espelho verdadeiro. O que ocorria do lado direito da rua, espelhava-se, ao contrário, no lado esquerdo: casas, redes, chatas encalhadas e pessoas.

Eu próprio estava no lado direito e sentia-me, no meu carro de caixas de sabão com rolamentos, do lado esquerdo, com o mesmo porte e sortido mas movendo-me em sentido contrário.

Intrigado, atingido o final da rua, contornei a rotunda de guano comprimido, tentando alcançar o lado esquerdo da rua e chegar ao sítio exacto onde me encontrava há instantes atrás. A maca6 é que, ao chegar ao dito sítio, eu já ali não estava, mas sim na posição contrária anterior, ou seja, sempre que me encontrava numa determinada localização da rua, o outro eu estava sempre na posição de espelho.

A solução seria transpor o imbróglio, questão que, ao cabo e ao resto, parecia bastante fácil. Desrespeitando os separadores da estrada, consegui seguir para a outra banda, trespassando atabalhoadamente o separador central, formado por três fileiras compactas de secos carapaus-do-alto.

Erro crasso. Quando dei por mim não existia eu, nem à direita nem à esquerda!

Olhei em frente e só avistei filas e filas paralelas de tarimbas de seca de peixe, a perder-se no horizonte, cobertas de moscas varejeiras. O cheiro nauseava, tuji-ni-masu!

Foi esse malcheiroso odor que me despertou.




Sem comentários: